fevereiro 19, 2012

Amor calado [parte III] - Vida segue

        Era como se eu estivesse sedado. Sim, era assim que eu me sentia. Como se tivesse recebido uma dose majestosa de benzodiazepínicos. O mundo à minha volta era uma realidade paralela. Eu circulava entre os alunos pelos corredores como um fantasma após um desencarne brusco. Nada me atingia. Meu corpo estava ali, mas minha mente percorria os lugares mais sombrios e distantes de um outro mundo. Só conseguia pensar no que me aconteceria quando me encontrasse com Lisa e com minha mãe. O que diria a elas? Haveria outra explicação que não fosse a verdade? Por que tinha que ter alimentado tanto essa fantasia por Dante?
Ainda mergulhado nesses pensamentos, cheguei à porta da minha sala e entrei. Ali junto aos outros alunos e à nossa exposição estava seguro. Ganhava tempo para raciocinar. O que quer que Lisa e minha mãe tivessem descoberto, não ousariam me interrogar na frente de todos. Mas a ansiedade era visível, e a menor preocupação com a mostra soava irritante aos meus nervos. Tudo era por demasiado insignificante diante da tamanha tempestade que eu estava prestes a enfrentar. E o que eu temia, aconteceu. Elas chegaram à porta, e com um olhar indagador, minha mãe me chamou.
Foram uns passos tão apreensivos. Parece que definitivamente ela teria coragem de me interrogar ali mesmo. Em segundos, estava à sua frente, aguardando a enxurrada de perguntas e a sentença final. Mas ao contrário do esperado, ela apenas me informou que estava indo embora. Ué, mas e a conversa com Dante? A verdade reveladora a meu respeito? A que fim teria levado todo aquele bate-papo entre os três na sala ao lado? Talvez estivesse se contendo para despejar a bomba quando estivéssemos a sós. Embora Lisa demonstrasse a mesma naturalidade de sempre. Eu estava mais confuso do que antes. Não sabia o que pensar.
A tensão ficou maior quando o dia seguinte chegou. As horas se passaram e nada de minha mãe me questionar a respeito de Dante ou sobre o resultado da conversa da noite anterior. Eu muito menos tinha coragem de perguntar qualquer coisa. Minha única salvação seria quando me encontrasse com Lisa à noite. Com ela teria coragem de perguntar o que havia ocorrido de fato, afinal, se ela tivesse com algum grilo a meu respeito já teria despejado suas indagações sobre mim, mas ao contrário, ligara toda manhosa me desejando bom dia.
Quando a noite chegou e me dirigi à sua casa, não aguentei muito tempo e perguntei de uma vez o que elas tinham conversado com Dante. Coisas banais. Minha mãe apenas ficou comentando sua semelhança com Murilo Benício e depois informou que era mãe do Incomum do terceiro ano, aguardando, talvez, que ele a cumprimentasse feliz por conhecer a mãe de um “grande” amigo seu. Dante apenas sorriu. Ora, eles estavam numa feira de ciências da escola, os pais de praticamente todos os alunos deviam estar circulando por lá, ela devia estar apenas informando ser mãe de algum deles. Incomum! Sei lá quem é Incomum. Sorriu. Apenas isso. E elas se foram.
Aliviado por saber que meu segredo continuava a salvo, ainda sentia o peso da desconfiança nos ombros. Lisa nada percebera, mas minha mãe permanecia calada, pensativa, em suspeita, como se algo não se encaixasse na história. Não havia mais o que fazer para tirar aquela dúvida da sua cabeça. Apenas aguardar que o tempo a fizesse esquecer. E assim o fiz.
Depois da exposição de ciências, o ano logo chegou ao fim. Era minha despedida da escola, da turma, dos professores. Novos saltos de agora em diante rumo ao vestibular, à faculdade. Sabia que era também meu adeus a Dante. Quando o veria novamente? Talvez nunca. Ah, aquela última tarde pelo colégio, circulando pelos corredores, a camisa recheada de assinaturas, e na sala do segundo ano, o último olhar para Dante, que fazia ainda sua última prova. Acabara! Eu estava me despedindo com grande emoção de alguém que sequer conhecia a minha existência.
E os meses correram. Não passei no primeiro vestibular e fui para a capital fazer cursinho. Tudo de repente se modificara. Uma nova realidade se desdobrava aos meus olhos. Nada me lembrava a vida pacata e os desejos secretos por Dante. Novos amigos foram surgindo, novas paixões e a vida parecia seguir o seu rumo.
Costumava almoçar, durante a semana, em um bar em frente ao prédio, mas aos domingos era fechado e então recorria a uma padaria próxima, que tinha um café da manhã digno de um almoço. E nesse dia, domingo das mães, a padaria estava lotada, mal encontrava local para sentar. Foi quando vi uma mesa de quatro lugares, ocupada apenas por um rapaz. Fui até lá e toquei no ombro dele, perguntando se havia alguém ali. Mal consegui segurar a respiração quando reconheci aquele rosto. Não era possível. Dante! Ele se levantou e saiu. Meus talheres escorregaram das mãos. Não conseguia comer direito. Ficava a todo instante o procurando pela padaria para não perdê-lo de vista.
O que teria acontecido? Ele estava morando ali também? Estava a passeio? Quando acabei a refeição, passei atordoado entre as pessoas, buscando aflito aquele rosto amado novamente. E o encontrei do lado de fora, em companhia de outro garoto menor, talvez primo ou irmão. Sua família devia estar lá dentro. Poderia ter ido até ele, falar que o lembrava da escola, mesmo não sendo colega dele, ele deveria se recordar do meu rosto pelos corredores. Mas não fui. Estava me achando muito desarrumado para estabelecer nosso primeiro contato de verdade. Saí da padaria, olhei rapidamente em sua direção e fui embora. Foi definitivamente a última vez que o vi.
Quando passei no vestibular, me mudei outra vez de cidade e já considerava Dante assunto morto. Foi quando surgiram as redes sociais e a febre do Orkut. Agora todo mundo poderia encontrar todo mundo e partilhar um pouquinho das intimidades de cada um. Então, por mera curiosidade, procurei e encontrei o perfil dele. Não havia muitas fotos, mas lá estava o garoto dos meus sonhos passados. Um pouquinho mais forte, porém, o mesmo sorriso e olhar inocente do primeiro dia que o vi.
Precisava colocar um fim naquela história. Ele precisava saber tudo que tinha alimentado por ele. Tudo que tinha passado em seu nome. E resolvi. Criei um perfil falso e lhe enviei um recado narrando todas as minhas peripécias desde o dia em que bati os olhos nele. Disse que ele poderia me mandar à merda, mas queria uma resposta. Precisava conhecer sua reação para seguir a vida. Um dia depois, ele me respondeu. Foi educado, talvez até sensível àquela inusitada situação, disse que agradecia todo o carinho que eu sentia por ele, mas que não poderia nunca corresponder, e no fim me pediu para não lhe enviar mais aqueles recados. Claro que eu obedeci. Não poderia exigir nada além dele. Ao menos estava aliviado. De uma maneira meio torta, tudo que tinha desejado, quando escrevi aquela primeira carta, chegara finalmente ao destinatário. Eu sabia desde o início que essa história não seria um conto de fadas, então foi uma maneira até interessante de chegar ao fim. Ela entrou para as minhas memórias platônicas e serviu para reforçar um pouquinho a minha verdadeira identidade na cabeça da minha mãe.

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