fevereiro 02, 2012

Amor calado [parte I] - A carta

        Eu havia acabado de trocar de sala. Algumas mudanças tinham ocorrido nas disposições das turmas e fui parar na sala ao lado do segundo ano. Era meu último ano no ensino médio, conhecia cada buraco daquela escola, cada professor, funcionários, alunos, os mesmos rostos curiosos a circular pelos corredores no intervalo. No entanto, sentado aos pés de um dos pilares do corredor, lendo alguma coisa sobre o joelho dobrado, me deparei com o inusitado. Cabelo curto, rosto fino e um olhar inocente. Vez por outra abria um leve sorriso com a leitura. Fiquei anestesiado. Como não poderia ter notado?
Não sabia exatamente o porquê, mas aquele garoto havia despertado em mim uma súbita atração, decorrente talvez de sua beleza, ou da similaridade com o modelo de perfeição que idealizamos. A sirene do fim do intervalo tocava, enquanto eu tentava disfarçar o olhar penetrante que acompanhava os movimentos dele até a porta de sua sala. Os dias seguintes confirmaram minha teoria: estava apaixonado.
Não havia um dia sequer ao chegar à escola que não o procurasse com os olhos. Encontrava sempre um jeito de vê-lo antes da aula começar, passava pela porta de sua sala no meio da aula, e meus intervalos eram todos dele. Se estivesse no pátio, era para lá que eu iria, se permanecesse no gramado ou nos corredores, por lá eu também me encontraria. Virou minha obsessão.
Decidi então investigar melhor sua vida, como se chamava, onde morava, mas não ousaria uma tentativa de aproximação. Ele parecia um perfeito hétero, embora nessa época eu mal conseguisse distinguir um cisco de uma paquera. Mas devagar consegui descobrir que ele morava numa cidade vizinha e todos os dias pegava a estrada em um “pau de arara” ao lado de outros estudantes. Fiquei determinado a descobrir a qual cidade aquele carro pertencia.
E chegando à escola um determinado dia, tive a chance que esperava. O carro estava parado ao lado do muro e o motorista separava alguns papéis do lado de fora. Tomei fôlego e me aproximei perdendo chão a cada passo. O homem se voltou para mim, e como se eu estivesse tranquilamente procurando transporte para viajar, perguntei.
- Esse carro vai pra onde?
O homem disse lá o nome de uma cidadezinha que eu já tinha ouvido falar, embora nunca tivesse ido. Agradecido, me retirei. Podia imaginar o olhar indagativo do homem atrás de mim. Mas que importava? Agora sabia onde meu pupilo morava. Ah, minha mente fantasiou tantas ideias. Poderia pegar um carro um fim de semana e ir visitar a cidade, quem sabe esbarrar nele e sair com aquela, “opa, você não estuda em tal escola?”, e nossa amizade surgir daí. Mas como justificar a viagem a minha mãe? E nem o nome dele eu sabia. Como iria encontrá-lo lá?
Foi então que para surpresa minha, o próprio resolveu me dá uma forcinha. Reparei certa vez durante o intervalo, que havia um nome riscado à caneta na perna da calça da farda dele, em toda a extensão da coxa. Olhei fixamente e identifiquei. Dante. Seria o nome dele? Esquisito. Precisava confirmar. E encontrei o meio através do professor de biologia. Augusto era completamente descontraído. Não havia aquele muro entre aluno e professor com ele, de modo que se algum aluno quisesse saber sua nota do bimestre anterior e ele estivesse longe do diário de classe, o aluno tinha total permissão para ir até lá e conferir. Foi o que acabou acontecendo comigo. Porém, eu aproveitei a oportunidade e chequei a turma do segundo ano, e lá estava com todas as letras, Dante.
Agora sabia seu nome e onde morava. Mas de que me adiantava? Eu nunca teria nada com ele. Resolvi então criar meu universo paralelo, onde Dante era o meu melhor amigo e até já havia me convidado para ir a sua cidade. Foi essa a versão que apresentei a minha mãe e até a Lisa, a garota com quem eu namorava já há alguns meses. Me contentava em fantasiar a elas, minha forte amizade com ele. Toda semana criava uma história diferente que envolvia Dante e a sua popularidade na escola. Dante e as meninas que se derretiam por ele. Dante e sua semelhança com Murilo Benício. Tanta confidência acabou despertando o interesse de Lisa, e logo ela estava ansiosamente curiosa para conhecê-lo. Era melhor eu diminuir o ritmo ou a coisa poderia sair do controle.
Voltei a focar na realidade a partir daí. Estava cada dia mais envolvido por Dante, e todas aquelas histórias que havia contado sobre ele só aumentavam ainda mais meu desejo de ter realmente algum contato com ele. Precisava fazer algo. Dante precisava ao menos tomar conhecimento do carinho que sentia por ele, precisava saber o quanto alguém ali na escola o estimava. Decidi então escrever um cartaz numa folha de ofício e pregar no quadro de sua sala, para que não só ele, mas toda a turma lesse e gerasse aquele murmurinho em torno de sua pessoa. A ideia de vê-lo se sentindo o máximo entre os colegas, estimulava minha imaginação.
E eis que preparei o cartaz descrevendo o quanto o admirava, o achava bonito e possuía muitas outras qualidades. A ideia era chegar um pouco mais cedo na escola e pregar o cartaz antes que qualquer aluno chegasse. Mas sempre aparecia alguém ou eu me sentia suspeito por ser o único a circular tão cedo pelos corredores, de modo que o cartaz foi ficando. Talvez fosse melhor escrever uma carta. Sim, uma carta endereçada unicamente a ele. Jogaria no carro que ele viajava e pronto. Mas não me identificaria a princípio. Precisava de um pseudônimo convincente. Escrevi como se fosse uma prima minha que se apaixonara por ele, mas não tinha coragem de se declarar, pedindo encarecidamente que eu lhe fizesse o favor de entregar a carta. Modifiquei até a letra. Tudo estava armado. Mas assim como o cartaz, também não encontrei a ocasião perfeita e ela também foi ficando.
Até que um dia, uma declaração escolar modificou os planos. Minha mãe me cobrava constantemente esse documento da escola, não me recordo para quê. O fato é que eu já tinha solicitado, já estava comigo, só que em meio à minha papelada, não conseguia encontrar. Pois ela resolveu agir, e numa determinada manhã quando acordei e abri a porta do quarto, estava lá na sala, meu caderno aberto, vários papéis em volta, a declaração nas mãos de minha mãe e ao lado, o cartaz e a carta para Dante.
- Encontrei a declaração. Agora o que é isso aqui?
Foi uma pergunta tão apreensiva pelo conteúdo da resposta, que eu não sei quem estava mais gelado. E eu tinha apenas alguns segundos para conseguir elaborar uma justificativa aceitável. Mas como já diz o ditado, quem brinca com fogo...

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