novembro 23, 2011

Um natal em homofobia

Era natal, eu me divertia com meus primos e com os primos dos meus primos jogando baralho, tinha sido minha grande descoberta naquelas férias, e logo o meu vício. Começamos apostando dez centavos, depois vinte e cinco, cinquenta e um real. Ganhei algumas partidas, mas perdi muitas também. Era época de “Você Vai Ver” de Zezé Di Camargo & Luciano nas rádios, de “Alô” de Roberto Carlos e “Com Você” de Sandy e Junior. Era tudo que ouvíamos diariamente nas estações da cidade. Diferente dos anos anteriores, naquele ano não estávamos passando as festas de fim de ano na casa da minha avó com a família, mas na capital, na casa das irmãs da mulher do meu tio, que também estava lá, ou seja, a casa estava cheia.
Apesar de saber que teria muita criança na casa, minha mãe resolveu se precaver e convidou um amigo meu do interior para viajar conosco, assim se eu não me entrosasse com ninguém, teria Fred para me fazer companhia. Mas essa precaução acabou se revelando desnecessária, já que logo me vi na maior amizade com os meninos de lá. Brincávamos de ludo, damas, dominó, esconde-esconde, e claro, baralho, o carro-chefe das diversões. Vez por outra, me via mexendo na bolsa da minha mãe, à procura de novas moedinhas que garantissem minha participação no jogo.
Eram umas férias diferentes e muito divertidas. Acompanhadas de praia, caranguejo, passeios de trem e de barco, lojas de brinquedo e até de artesanato, onde adquiri um cigarrinho de madeira que guardo até hoje. Tudo ia muito bem até que uma simples brincadeira transformou tudo. Na televisão daqueles tempos, a sessão da tarde não era muito diferente, passava muito Ghost, A Lagoa Azul e As Tartarugas Ninjas, mas o grande destaque estava mesmo na Rede Manchete, com Os Cavaleiros dos Zodíaco. Era a novidade que chegava hipnotizando toda a garotada. Eu, particularmente, não havia me interessado ainda, e com isso, não perdia a chance de encher o ouvido dos meninos com minhas opiniões depreciativas.
Naquela noite, contudo, o conflito esquentou. Todos os meninos estavam vidrados diante da tevê assistindo os heróis japoneses, as meninas brincavam de jogo da memória na varanda e a calçada estava tomada pelos adultos. Eu queria alimentar meu vício do baralho, mas as meninas só iriam se todos participassem, e os meninos não abririam mão de mais um episódio da série. Eu estava sobrando. E assim fiquei transitando entre a sala e a varanda, tentando arrancar alguma diversão disso.
Quando estava na varanda, ficava enviando pistas erradas para as meninas perderem no jogo, o que as irritava. Quando chegava à sala, não parava um segundo de falar mal do desenho enquanto os meninos assistiam. Resumindo, virei o chato da noite. Sem aguentar mais, Fred lançou um desafio entre as minhas idas e vindas. Se eu voltasse de novo para a sala enquanto eles assistiam a série, eu era uma “mulherzinha”. Uma brincadeira boba, que eu mesmo já tinha feito com outros colegas. Poderia ter sido a “mulher do padre”. Que diferença faria? Eu não deixaria de ser homem por isso.
Com o desafio no ar, fui novamente ver o jogo das meninas. Mas depois de algum tempo, já as tinha enchido o suficiente, precisava perturbar os meninos agora. E assim, dei a volta pelos fundos, entrei no quarto, coloquei um boné e fui me chegando aos pouquinhos na sala, para que ninguém me percebesse. Bobagem! Em pouco tempo Fred tinha me visto e começava a me chamar de “mulherzinha”. Tudo bem, eu estava rendido. Não era um homem de palavra. Mas o pior estava por vir. Enquanto recebia o ataque verbal de Fred, minha mãe surgiu na sala. Paralisei ali mesmo. Conhecendo a tolerância dela para esse tipo de brincadeira, eu sabia que ela não deixaria aquilo passar.
Primeiro ela perguntou a Fred o que significava aquilo, e antes mesmo dele responder, já começou a acusá-lo, a lembrá-lo que ele estava ali porque ‘ela’ o tinha levado, que ele devia, no mínimo, respeito a mim. Fred ficou todo desconcertado. Eu me senti um réu no tribunal do júri, enquanto o advogado defendia meus crimes. Aquela cena me era extremamente humilhante. Minha mãe criando caso na frente de todos os meninos, por uma estúpida brincadeira de criança. Se não gostava, chamasse a atenção e pedisse para parar, sem fazer escândalo. Mas o clima estava instalado. Fui para o quarto chorar e minha mãe fechou o tempo. Pronto! Era o fim das férias animadas.
No fundo me sentia acabado pelo que acontecera. Não devia ter provocado os meninos. Não devia ter retornado à sala. Mais que isso! Eu devia ser mais macho como meus primos. Achava todos tão mais homem do que eu. Eu era um molenga. Se não o fosse, minha mãe não precisaria defender minha virilidade e eu não teria que passar por situações como aquela. Pobre Fred! Estava numa saia justa. A pessoa que havia pagado suas despesas e o mantinha ali tinha entrado em conflito com ele. Nem ir embora ele podia. Mas essa era exatamente a decisão de cabeça quente da minha mãe, voltar os três para casa no dia seguinte.
Enquanto desabafava com os adultos na calçada, a situação se agravou mais ainda, quando ela percebeu que as cunhadas do meu tio estavam do lado de Fred nessa confusão. E para completar, a mulher do meu tio saiu com essa:
- Quando a gente tem um filho com problema, não deve esconder.
Foi o que faltava para minha mãe a incluir na lista podre da família, e posteriormente cortar relações. Apesar de tudo, minha mãe acabou sendo convencida a ficar até o fim das férias. Pediu desculpas a Fred no dia seguinte, mas o clima tenso na casa permaneceu até o último dia. Foi a última vez que pisamos ali.
Como previsto, a família do meu tio foi literalmente banida do nosso convívio nos anos seguintes. Mas nada que o tempo não cicatrize, ou mude o eixo. Oito anos depois, meu tio e a mulher chegaram para passar o natal na casa da minha avó. Era tempo de refazer os laços, de esquecer antigas mágoas e celebrar a união. Minha mãe estava visivelmente exultante com a chegada deles. Fez questão de levá-los para rever a cidade, e não perdeu a chance de apresentar-lhes a minha namorada como um troféu. Afinal, o tempo mostrara que seu filho não tinha problema algum.

16 comentários:

  1. bem, vc foi culpado mesmo. fica provocando os meninos. ou um dos meninos ia te xingar, ou seria uma das meninas, e sua mãe ia acabar explodindo com alguém né?

    mas coisas de criança mesmo...
    sua mãe q deveria ser mais... como direi... adulta.

    outra coisa: acho mto interessante como todos os adultos percebem quando uma criança é gay né? todo mundo percebe isso, mas continuam sem acreditar que é algo que a pessoa nasce assim...

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  2. Putz, que história cara... não acho que você teve culpa, isso é coisa de criança mesmo. Sua mãe exagerou demais, isso sim. Aliás, isso só serviu pra ela mostrar a todos os seus familiares a própria insegurança...

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  3. Boa tarde, tudo bem? Vou citar duas frases suas, uma do post e uma do seu perfil:

    “Afinal o tempo mostrara que seu filho não tinha problema algum.”

    “Uma figura aparentemente normal, transitando em um mundo aparentemente normal, e com inquietações aparentemente normais.”

    Olha, se não for pedir muito (mesmo porque não tenho esse direito) eu gostaria que você, um dia qualquer, me falasse sobre essa coisa do “aparentemente” e do “normal”. Essas palavrinhas confundem um pouco a minha cabeça.

    Beijão

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  4. Foxx, é verdade mesmo.
    Os adultos sempre sacam quando uma criança é gay e ainda assim acham que as pessoas escolhem.
    Vai entender!

    Abraço!

    ****************

    Peter, vc foi em cima!
    Minha mãe só mostrava mesmo a insegurança dela com essas atitudes e me colocava no foco das atenções.

    Abraço!

    ****************

    Cesinha, o que é normal para vc?
    Na primeira frase que vc citou, o "problema" a que me referi, era como a mulher do meu tio se referia à homossexualidade. Para ela, ter um filho gay era ter um filho com problema. Quando eu arranjei uma namorada, minha mãe quis mostrar a ela que eu era "normal" como qualquer garoto hétero, ou seja, não era gay.

    Bom, aqui entramos na palavra 'normal', que pode ser entendido, nesse caso, como quem é hétero, quem casa, tem filhos. Isso é a "normalidade" para a sociedade. O que não significa que quem é gay não seja normal, só não é visto ainda assim por muitos.

    Quando escrevi que sou “Uma figura aparentemente normal, transitando em um mundo aparentemente normal, e com inquietações aparentemente normais”, estava me referindo a tudo no modo geral, ao que é de fato normal e o que as pessoas julgam como 'normal'. Ou seja, sou normal aos olhos de alguns e não sou aos olhos de outros. O mundo é normal para alguns e não é para outros. Assim como os problemas são normais de acordo com cada ponto de vista.

    É mais ou menos isso.
    Consegui esclarecer ou piorei tudo?
    rsrs

    Abraço!!

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  5. kkkkkk... assim, digamos que você deu alguns giros de 360 graus nessas explicações, mas tudo bem. Não quero que fiquem me chamando de troller... então já deu pro começo. Mais pra frente a gente vai se falando.

    Oh, seu texto, impecável e limpo como sempre, viu... admiro muito isso!
    Beijos

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  6. Medo da sua mãe. Já aconteceu muito disso comigo, mas minha mãe nunca deu um ataque desses não...

    Um beijo!

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  7. Sua história me faz pensar no seguinte: até que ponto as mães e os familiares colaboram pra reforçar e confirmar uma tendência nossa? mesmo que isso seja contra o que ele consideram ideal numa pessoa?

    A crueldade, como se vê, começa cedo! Bullying familiar, isso sim!

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  8. Menino,acho que isso aconteceu por vc ser filho único.Observo as mães.Parecem gaviões protegendo seus filhos.Ainda bem que não sou filho único.Compram brigas a toa.kkkk.
    Abraços.

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  9. É como eu digo: os Freds são sempre cruéis... hehehe! Maravilha de relato esse... versões desse evento fazem parte de muitas infâncias... Hugz, man!

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  10. "Ficar olhando chocado? Nada! Eu pegava logo vc!"

    Adoro! Cainimim! Hauahauhauahau

    Mas a praia nem era Itacoa. Tô sempre por lá, mas no momento estou em outra cidade, curtindo outra praia :p

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  11. Tô vendo aqui que tenho umas fotos da vista da praia de Itacoa, mas você não tem e-mail de contato no blog... =/

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  12. É exatamente esse "problema" que deixa minha vida tãããão mais divertida.

    Aí sobe em cima de mim um homem lindo, sarado, de olhos claros, sem camisa e com um "problema" enoooooorme.

    Morri!

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  13. Digamos que a mulher do seu tio foi mega infeliz ao fazer este comentario: "...- Quando a gente tem um filho com problema, não deve esconder..."

    Ainda assim, acredito que sua mae nao foi a vila dessa sua historia da vida real... Tudo o que ela fez foi para protege-lo e por amor, e como diz a minha patroa: "...nao se pode exigir das pessoas o que elas nao tem para oferecer..." Tanto vc, quanto sua mae e sua tia nao tiveram culpa por agirem como tal: vc pela pouca experiencia agiu pelo impulso e elas pela educacao machista e retrograda que receberam tambem...

    Baci!

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  14. Na verdade, eu não sei se a mulher do seu tio foi tão vilã assim como eu vi nos comentários acima. Afinal, ela só disse o que todo mundo estava pensando, com o diferencial de que ela propunha não esconder o "problema", mas encará-lo... Se a gente troca a palavra "problema" na frase cela por uma "sexualidade diferente", temos aí a frase mais lúcida da história toda...

    E, como a vida é aprendizagem, todo undo nessa família ainda vai aprender muito, não?

    Abraços!!

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  15. Jardineiro e Cara Comum, mais uma vez vcs foram em cima.
    Sim, a mulher do meu tio foi infeliz no comentário, mas somente pela forma como abordou a homossexualidade.
    A atitude dela de encarar e não esconder a situação, é louvável. Tudo seria mais simples.
    Mas o mundo ainda tinha muito que ensinar a todos, e ainda tem, como disse Cara Comum.
    A mulher do meu tio e minha mãe tinham preconceito, nenhuma queria um filho gay, e apesar de terem atitudes diferentes, se fosse minha tia, não sei se ela esconderia tbm ou encarava.
    Só o tempo com seus ensinamentos pode mudar e transformar sentimentos, reações e valores.

    Abração!!

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  16. História bem conhecida por quase todos aqui, eu acho. As crianças gays sofrem um bocado com tudo isso. Seria, realmente, simples, se quando percebessem a homossexualidade dos filhos, os pais a assumissem, mas aí já seria utópico demais.

    A sociedade pisa nos gays de uma maneira brutal que é aceitável, mas não louvável, a atitude da mãe de Gay Incomum.

    Lembro-me, desde que me conheço por gente, gostar do que os outros não gostavam, gostar de estar perto das meninas. Até me "apaixonei" por algumas, mas, desde sempre o foco foram os garotos que, apesar de distantes, eram os que me provocavam o que chamam de "libido".

    Acho que nunca ninguém saberá disso. Não pela minha boca, porque isso só interessa a mim. Se vierem perguntar (como já vieram), eu negarei. Porém, todos sabem e veem, só falta que eu me pronuncie.

    Até penso que, se um dia eu vier a me pronunciar, vou ouvir muitos "eu já sabia". Então é melhor manter o "suspense", que muitas vezes se torna "drama" como este que acabei de ler.

    Biólogo Hipocondríaco

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