janeiro 10, 2012

Campbell, Clara e Giulio


        As estrelas brilhavam naquela noite. O céu era um espetáculo de luzes. Um mundo à nossa volta. No colo de Lisa, minha cabeça viajava pelo cosmo. Eu gostava de ficar deitado sobre suas pernas, olhando para cima e sonhando. Namorava Lisa há quase um ano. Nunca pensei que nosso namoro fosse durar tanto tempo. Minhas relações anteriores não passavam de dois meses. Não sabia onde aquilo tudo iria parar, mas eu estava confortável, tinha satisfeito minha mãe com as cobranças de uma namorada, mantinha minha referência heterossexual para a sociedade, evitando comentários desagradáveis e encontrara uma garota que me amava de verdade. Aos poucos, caí no comodismo.
Conheci Lisa por acaso, quando inventei de produzir meu segundo filme na cidade. Depois do primeiro, aos 15 anos, do qual saí com Tatieli, e mais um ano de descanso, era hora de providenciar a nova conquista. Na verdade, minha mãe incentivava essas ideias na intenção de que eu encontrasse alguma namorada. Então era quase que obrigatório sair algum namoro desses projetos. Era a condição para ela gastar tanto com minha imaginação.
Quando decidimos produzir o segundo filme, antes mesmo de escalar o elenco, ela já se perguntava com quem eu iria ficar daquela vez. E foi assim que Lisa apareceu. Ela entrou no filme para substituir outra menina que tinha desistido, e logo se mostrou dedicada e bastante receptiva com o diretor. Ensaiamos bastante antes de gravar, e quando finalmente chegamos às gravações, já fazia um mês de namoro. O detalhe importante é que Lisa tinha outro namorado quando nos conhecemos, e mesmo ela dizendo que o namoro ia mal, eu fui praticamente o responsável por apressar a separação.
Nessa etapa, eu já conhecia sua mãe, sua irmã e até alguns primos. Lisa era dois anos mais velha e eu me sentia totalmente inexperiente com ela. Ainda assim, éramos o casal top da cidade. Todo mundo que passava por nós derramava elogios. A noite que culminou no nosso primeiro beijo e o início da relação, aconteceu depois de muita insistência dela. Naquele momento, eu senti que estava dando mais um passo contra minha natureza, mas era preciso enfrentar o que tinha provocado. Tentei remediar, apelando para o aparelho ortodôntico, que estava usando há pouco tempo, e o medo de machucá-la, mas o beijo acabou acontecendo depois da meia-noite, quando esgotei minhas chances de desculpas e minha mãe surgiu na esquina preocupada com a demora do filhote.
Agora estávamos ali, quase um ano depois, olhando as estrelas e planejando o futuro.
- O que você acha de Campbell, Clara e Giulio? – eu perguntei.
Era mais uma conversa sobre o nome dos nossos futuros filhos. Essa tinha sido uma discussão frequente ao longo daquele ano. Estávamos obcecados por crianças. Sempre que encontrávamos uma, era aquela babação. Eu já perdera as contas de quantos nomes haviam passado pela minha lista, de Abel a Zeca. Um detalhe: eu só escolhia nomes masculinos. De modo que Clara foi sugestão de Lisa. Talvez a psicologia explique. Assim, depois de um longo percurso, estávamos finalmente entrando em acordo sobre os nomes dos três rebentos. Sim, seriam três! Dois meninos e uma menina. Como se pudéssemos escolher.
Essa fixação partiu de mim e acabou a contagiando. Na verdade, acho que partiu mesmo da minha mãe e me contaminou. Ela sonhava tanto com os netos, que eu acabei assumindo mais esse sonho seu. Desejei tanto um filho, que esqueci a etapa anterior a ele, o casamento. Mas Lisa estava ali para me lembrar.
Nossa relação era correta. Toda noite eu ia até sua casa, namorava no sofá e depois ficava um tempinho nos batentes da calçada. Quando o namoro (que eu imaginava não passar de dois meses) acabou se firmando, fui embarcando na ilusão de ser um garoto hétero, de casar, ter filhos e ser uma família feliz. Cheguei verdadeiramente a acreditar nisso. Apesar de não me sentir atraído sexualmente, gostava muito de estar com ela, me sentia bem. E o sexo era ainda uma realidade distante, já que ela seguia a filosofia de sexo somente após o casamento.
Estávamos presos, amarrados pelos sonhos, mais que isso, éramos cúmplices, confidentes. Lisa era minha verdadeira companhia, era quem me apoiava, estava presente quando precisava, quem me amava profundamente. Nos momentos difíceis, foi em seu colo que chorei, foi aos seus ouvidos que recitei os melhores planos para nossas vidas, foi nas inúmeras cartas que lhe escrevi que gravei os sentimentos de numa fase tão conflitante. Não havia como não me envolver mais. Lisa era parte de mim, era da família. Mas nossos destinos se mostravam inevitavelmente divergentes. Eu queria que aqueles planos se tornassem reais algum dia, mas a força contrária dentro de mim relutava. Foi nesse período que passei a ter uma identificação maior com o Superman, afinal Clark também escondia um grande segredo dos que amava, e nem por isso deixava de ser uma boa pessoa. Era ao que me agarrava para não me sentir um crápula muitas vezes.
Enquanto discutia a pronúncia de Giulio com Lisa, o tempo passava. A cada dia, a cada mês, a cada ano ia ficando mais difícil manter aquela situação. A intimidade aumentava, a cobrança e o compromisso cresciam. Não tinha coragem de romper, me sentia ligado demais, embora soubesse que não teria como sustentar por muito tempo. A fantasia acabou durando 8 anos e meio. Muito para uma relação prevista para não dar certo. Mas quem poderia dizer que não daria, depois de viver tanto tempo aquela farsa que criei lá atrás, quando decidi viver como hétero ao me descobrir gay? Foi realmente difícil ver o fim da nossa união, de todos nossos segredos, pizzas, sonhos, aventuras. A mulher mais experiente parecia mais criança que eu ao fim de tudo. A minha maior preocupação era ter atrasado sua vida, que ela não conseguisse refazer seus passos. Mas felizmente ela parece feliz hoje ao lado do seu marido.
Arrependimentos? Sim, muitos! Não pelo que vivemos e partilhamos juntos, mas pelo que deixamos de viver, pelas histórias mais honestas que poderíamos ter tido. Lisa me proporcionou muitos momentos de felicidade, mas com certeza ambos teríamos sido mais felizes com seus pares de verdade. Campbell, Clara e Giulio nunca chegaram a nascer. Muitas vezes me imaginava olhando para um futuro filho dela e pensando que aquele garoto poderia ser meu, o nosso Campbell, mas  melhor que não o fosse. Quantos casamentos baseados na mentira são levados adiante, construídos sob o preconceito, em nome de um conceito de família que alguém criou e implantou como certo. Não! É hora de acabar esse ciclo. É chegada a hora de cada um viver sua realidade sem medos e inseguranças. Gays, héteros, bis, travestis, trans... humanos, crescendo e vivendo apenas.

14 comentários:

  1. Então... eu sou um que poderia estar casado hoje, e provavelmente teria filhos nipo-gordinhos bem bonitinhos... kkk
    (http://tinmanbr.blogspot.com/2008/02/she.html)

    Não sei ao certo ao que dizer... se por um lado você já tinha consciência do que queria, por outro, não há nada que o impeça tentar e experimentar... quem sabe?! Não adianta ser vidente do passado...

    Agora eu confesso que tenho uma dúvida que me assombra, e acho que você vai conseguir me entender... E cade a coragem de depois olhar para essa pessoa e dizer que "hoje" é gay? Acho que deve ser pior do que contar para a mãe kkk

    Abraço grande!

    ResponderExcluir
  2. nunca namorei, nunca me imaginei como pai, etc etc etc ...

    definitivamente não tenho pena de mulheres q se envolvem com gays, no fundo elas mesmas é q se deixam enganar pois não tem como uma pessoa camuflar com tanta perfeição q a pessoa não saque ... não enxergam pq não querem ver ... #fato

    mas tb não aprovo a postura de gays q se deixam passar por héteros ...

    mas quem sou eu para julgar algo né? tb tenho minhas falhas e estas não são poucas ...

    existem fases em nossa vidas em que a inexperiência nos leva a cometer muitos erros e eu tb os cometi ..

    bjão e parabéns pela oportuna e bem contextualizada reflexão ...

    ResponderExcluir
  3. Latinha, eu não me arrependo hoje de não ter tido esses filhos que sonhava ou de ter casado. Seria um desastre, eu tentei isso por mais de 8 anos.
    Eu nunca me senti atraído por mulher, só não me aceitava e queria viver a realidade da minha mãe.
    Quanto a contar para Lisa, não vejo isso como algo tão mal. Claro que tudo tem seu momento. Jogar essa verdade nela agora seria maldade, mas o tempo se encarrega de tudo. um dia todos esses anos serão apenas lembranças e não terei porque esconder mais nada dela.

    Abração!

    *****************************

    Bratz, hoje eu também posso dizer que não aprovo os gays que se deixam passar por héteros. Mas naquela época tudo era diferente. Cresci numa cidade muito pequena de interior, com o preconceito contra os gays enraizados como algo sujo, a família repudiando, a unica alternativa que sobrava era tentar com todas as forças lutar contra o instinto.
    Quanto às mulheres que se envolvem com gays, eu prefiro não julgar. Acho mesmo que elas podem desconfiar em algum momento, mas depois com o tempo, parece que a convivência cega, e poucas pistas sobram para identificar, o sexo seria uma, e ainda há os que conseguem disfarçar até nisso. Eu não tive essa chance, porque nunca fizemos sexo, e talvez se tivéssemos feito, não teria durado tanto tempo.

    Abração!!

    ResponderExcluir
  4. Nossa, tempo bagarai!

    Isso nunca passou pela minha cabeça, sabe? Por mais que lá no fundo eu sempre soubesse que era gay, eu tinha bem consolidado na minha cabeça que preferia ficar sozinho a enganar alguém. Sabe-se lá porque.

    Agora, tu já morou em Nikiti city é? XD

    Beijo!

    ResponderExcluir
  5. A gente tem muita coisa de gay incomum (rs). Também namorei muitas mulheres na adolescência e um pouco além dela.
    Como vc leu numa postagem do IdG outro dia, até acreditei que eu era hétero. Emfim, minha preocupação depois foi também de tê-las feito perder tempo de vida útil e mais prazerosa (rsrs).
    8 anos e meio? O meu tempo recorde durou 2 anos e foi muito.
    Bjaum.

    ResponderExcluir
  6. Gosto de ler essas histórias.
    Namorei algumas meninas.Só queria beijar e sexo.Na verdade,fui me descobrir aos 18 anos.Mesmo assim,ficava com h e m.
    Depois de anos(semana retrasada),reencontrei uma amiga de adolescência no FB.Ela sabia das minhas safadezas.Conversa vai,conversa vem no chat do FB,acabei falando demais.Imaginava que ela sabia que eu ficava com seu ex.
    Abraços,menino.

    ResponderExcluir
  7. Gostei muito de seu texto. Simples e profundo, fluente, gostoso.

    Também passei por algo parecido, e depois de já ter transado com homens. Resolvi ceder ao assédio de uma mulher que já insistia pra ficar comigo há dois anos... Foi um ano de namoro, muito sexo, era ótimo. Pra ela. Eu gostava, mas sentia que faltava algo. Não era minha praia, mas eu tinha medo de largar tudo e ter que me assumir definitivamente gay. Ficava mesmo apavorado com essa ideia.
    Até que um namorado apareceu, e não deu mais pra segurar a relação com ela. Acabei, tomei a iniciativa. Ela ainda insistiu alguns meses, depois deixou de me ligar.

    Ah, só uma coisa: eu não a enganei. Antes de ficar com ela, tentei me justificar que não ficava porque era gay. Ela não acreditou no que contei, sobre minhas experiências. Ela quis assim mesmo.

    Cheguei até onde não aguentei mais. Não me arrependi.

    ResponderExcluir
  8. Pois é, Alex, cada um com suas histórias. Os que nunca tentaram ser hétero, os que tentaram e desistiram, os que persistiram, os que gostaram dos dois lados, os que enganaram outros e a si mesmos, os que sempre foram sinceros...
    De tudo isso, eu aprendi uma coisa.
    Não dá pra ser feliz, nem fazer alguém feliz, se não formos sinceros com nós mesmos.
    Portanto, pra mim, nunca mais mulher na minha vida. A menos que meu coração queira de verdade um dia, o que não acredito que acontecerá.

    Abração!!

    ResponderExcluir
  9. 8 anos e meio é muito tempo.
    nossa!

    ResponderExcluir
  10. Ate hoje nao consegui matar dentro de mim a vontade de ser pai, mesmo sabendo que isso se torna cada vez mais algo totalmente fora da minha realidade...

    Nunca namorei meninas e no passado me arrependi de nao te-lo feito, ja que isso me ajudaria a constatar mais depressa que eu nao me sentia atraido pelo sexo feminino... Naquela epoca preferia preservar as meninas pois temia estragar uma fase importante da vida delas com algo que ja sabia que nao iria dar certo la na frente... O fato de ser muito Catolico me ajudava a utilizar desses valores para fugir delas, kkk.

    Hoje ja nao vejo mais a necessaidade de ter tido uma namorada... Minha preferencia sexual, assim como a responsabilidade de nao se ter que provar nada a ninguem ja estao mais do que claros em minha cabeca.


    A frase da noite foi: "Não dá pra ser feliz, nem fazer alguém feliz, se não formos sinceros com nós mesmos", ela acabou de ser postada no meu facebook e tenho certeza q ninguem a entendeu, kkk.

    ResponderExcluir
  11. Bom, depois que eu mesmo percebi e resolvi minha sexualidade para mim, nunca escondi minha bissexualidade pra namorado(a) nenhum(a). Só porque eu acho que é sacanagem a pessoa não saber em qual barco está entrando.

    Mas antes disso, já vivi muito conflito. E, exatamente por isso, não julgo quem tentar viver um amor heterossexual sem sentir-se verdadeiramente atraido/envolvido. Porque todos temos nossa fase de aceitação e aprendizagem sobre a gente mesmo, não é? Só que a de alguns demora mais que a de outros...

    Abraços!!!

    ResponderExcluir
  12. Jardineiro e Cara Comum, é isso mesmo. O tempo de aprendizagem e amadurecimento, e os caminhos que passamos até ele são específicos de cada um.
    Hoje eu tenho a consciência de não enganar mais ninguém assim.
    Demorei a entender? Sim! Mas se tivesse terminado antes com Lisa, poderia ter tido outras, o esclarecimento ainda não teria chegado.
    Não tenho como dizer q ter me envolvido com garotas foi bom ou ruim para mim. Só posso dizer o q aprendi disso tudo.

    Abração!!

    ResponderExcluir

Sintam-se livres para deixar seus apontamentos no meu diário.