dezembro 10, 2011

Ravier

Quando minha mãe resolveu me entrosar de novo com dois amigos da minha infância, eu sabia que sua intenção era encontrar um grupo de amigos ou mesmo um único menino que fosse capaz de me tirar de casa. Ao contrário da imagem "normal" de mães que desejam os filhos sempre em casa, adiando a mocidade o máximo possível, minha mãe queria me ver na rua, saindo com os amigos, paquerando e levando namorada pra família conhecer. Às vezes eu penso que se tivesse sido um garoto rueiro, minha mãe faria o impossível para me trancar em casa. Ninguém nunca está satisfeito com o que tem. E assim aconteceu naquela noite, em uma das novenas da festa do padroeiro. Eu, como sempre acuado ao lado dela, me sentia muito bem sozinho, enquanto ela admirava os meninos da minha idade que circulavam em bandos pela praça da igreja, feito "rapazinhos". Não, aquela situação não poderia continuar! Seu filho precisava sair como os outros. Ela daria seu jeito.
Durante a festa do padroeiro, todo mundo que já tinha dado adeus ao futuro miserável da cidade, retornava para mostrar como estava bem de vida. A mãe de Wesley não deixaria de obedecer a regra. Mãe solteira ainda jovem, aprontou todas para conseguir driblar o compromisso da maternidade e curtir sua juventude. Minha mãe, como boa vizinha, ficou muitas noites com Wesley ainda pequeno, enquanto ela se divertia. Logo nasceu uma amizade entre a gente. Talvez tenha sido meu primeiro amigo. Sempre estávamos ali pela rua ou calçada de casa com uma brincadeira nova. Foi em uma dessas ocasiões que conheci o primo dele, Ravier. Não tenho lembranças dessa época, era muito pequeno. Tudo que sei sobre esse período foi relatado por minha mãe. Por isso, não recordava de Ravier quando minha mãe resolveu nos reaproximar.
Wesley e sua mãe estavam na cidade para as festividades religiosas. Ao tomar conhecimento dessa informação, minha mãe sentiu que talvez fosse uma boa oportunidade de seu filho estabelecer novas amizades e, consequentemente, andar em bando pela cidade. Para sua sorte, Wesley e Ravier estavam sentados próximos a nós na praça da igreja durante aquela novena. Por um bom tempo, minha mãe insistiu para que eu fosse até eles conversar. Mas conversar o quê? Fazia tanto tempo que eu não via Wesley, e Ravier então, mal recordava. Mas minha mãe estava convicta em seu objetivo. Contra minha vontade, se aproximou deles e puxou assunto, perguntando pela mãe de Wesley e recordando momentos do passado, até me introduzir na história e me chamar até eles. Cheguei lá e fiquei observando os dois, enquanto minha mãe debulhava o quanto éramos amigos e ainda poderíamos ser, convidando os dois a irem na nossa casa qualquer dia para sairmos. Apesar da vergonha e da timidez presentes, nunca consegui esquecer o sorriso de Ravier ao dizer: "se a preguiça deixar".
Os futuros encontros e as saídas de casa à noite, para a alegria da minha mãe, se mostraram promissores. Estávamos nos redescobrindo, agora com toda a experiência de Wesley na capital. As conversas saíam espontâneas, fui me deixando jogar, e logo estava realmente me divertindo com os dois. Afinal, sair com os amigos era mesmo muito bom, minha mãe poderia estar certa. Nesse período, que não durou mais do que uma semana, comecei a descobrir o valor da amizade. Já não queria ficar no meu mundinho em casa, e isso era perturbador. Estava fazendo algo que me dava prazer e agradava minha mãe ao mesmo tempo. Que estranho! Alguma coisa estava errada. Me recordo até de irmos a um cinema que inventaram na cidade, que nada mais era do que uma tevê de 20 polegadas ligada em uma sala simples. Mas não deixava de ser uma novidade. Foi aí que comecei a partilhar de uma mesma paixão de Ravier, Os Cavaleiros do Zodíaco.
Quando Wesley foi embora, alguma coisa tinha nascido entre mim e Ravier, e isso nos manteve unidos. Voltamos a sair à noite, agora só nós dois. Aqui acolá, aparecia um amigo dele que eu não conhecia e isso me deixava levemente enciumado. Tinha demorado muito para encontrar um amigo, e demorado mais ainda para me sentir à vontade com algum, portanto, Ravier era 'meu' amigo, só meu. Não queria dividi-lo com mais ninguém, e nem queria sair a três, porque não me sentia totalmente desinibido com seus amigos. Mas nunca comentei nada a respeito com ele. Tinha medo de colocar nossa amizade em risco, e suportava calado dividi-lo com outros. Embora com o passar do tempo, fui percebendo que eu era seu amigo mais constante, e uma forte amizade não tardou a se firmar entre nós.
Quase toda noite, ele ia até minha casa e saíamos pela cidade, explorando novos lugares, novas ruas, conversando, rindo. Eu adorava a expressão do seu rosto quando sorria. Ele fechava os olhos e o sorriso moleque saía fazendo uma covinha nos dois lados da bochecha. Eu tinha uma admiração absurda por ele, dizia pra mim mesmo que colocaria seu nome um dia em meu filho, e imaginava a sorte que o pai dele tinha em ter um filho tão especial e poder abraçá-lo toda manhã. A cada dia ele se fazia mais presente na minha vida, com minha mãe o tratando como outro filho. Ele passou a mudar o corte de cabelo influenciado por ela, dormia lá em casa algumas noites, recebia beijinhos e era tratado a pão-de-ló. Eu gostava disso. De certo modo era o irmão que eu nunca tive.
Seu jeito espontâneo de ser, acabou conquistando mais um membro da família. Meu pai foi um grande incentivador da nossa amizade e adorava conversar com ele quando eu ia passar os domingos no seu sítio. Ravier costumava dizer que queria ser padre, e meu pai o incentivava a me levar junto, para desconforto total da minha mãe. Lá no sítio, nós tomávamos banho de piscina, percorríamos todas as plantações da casa, os pés de manga, carambola, acerola, goiaba. Brincávamos com os cachorros, com os patos. Chegamos a nadar nu uma vez pra saber como era. Tudo recheado de muita inocência e de uma certa curiosidade minha. Eu sempre me fazia de desinteressado em algo que tinha muito interesse. Foi assim que ele me contou que tinha cortado seus pelos pubianos, quando eu nem imaginava que ele já os tivesse. Ele trocava de roupa na minha frente quando eu ia à sua casa, apesar de vestir a cueca sempre sentado e muito depressa. De fato, éramos íntimos.
Com Ravier, dividi momentos preciosos da minha vida, falei de animais, amigos, amores, dei risadas, fiz pipocas, troquei presentes, fui à missa, confidenciei segredos, guardei outros, colecionei figurinhas dos Cavaleiros do Zodíaco, e me surpreendi quando ele me deu seus pôsters que guardo até hoje. Nossa amizade foi até o limite máximo onde dois amigos não podem ultrapassar. Mas eu queria mais. E essa sede, somada à minha falta de tato em controlar meu egoísmo, esgarçou a nossa amizade causando inevitavelmente seu fim. Comecei a tratá-lo mal por qualquer besteira, a ignorá-lo. Não sei o que pensava que conseguiria com isso, mas fui matando em mim tudo de lindo que já tínhamos construído. Fui relapso, não soube lapidar o bem precioso que possuía e perdi o único e verdadeiro amigo que eu já tivera. Ficamos um tempo sem nos falar enquanto a vida nos lançava a destinos opostos. Quando voltei a reencontrá-lo, já estava para entrar na faculdade. Eu o procurei. A consciência por ter sido o culpado de perder nossa amizade nunca me abandonou. Talvez ainda não fosse tarde para corrigir alguns erros.
E realmente não era tarde para me reaproximar de Ravier, mas era tarde para partilhar de sua amizade. Apesar dele se mostrar receptivo e disposto a refazer os laços, nossos destinos estão cortados pela distância, e o máximo que podemos ter agora são conversas pelo messenger. E não me sinto capaz de manter essa relação. Quando estou diante dele perco as ideias. O remorso toma conta de mim. Aquele garoto que me conhecia a fundo, agora me deixa mudo. Uma determinada noite, quando menos esperava, sentado na cama e mexendo no computador no escuro do quarto, escuto vozes subindo as escadas e ao olhar, o mesmo sorriso moleque, o mesmo olho puxadinho, as mesmas covinhas. Não podia receber Ravier naquele estado, estava horrível, minha mãe devia ter me avisado. Ele e a namorada tinham ido me fazer uma rápida visita. Alguns papos em dia. - "Wesley já é pai, mas não se casou, como a mãe". Fiquei o observando. Agora, com a consciência de que era amor de verdade o que sentia por ele, posso afirmar realmente que o primeiro amor nunca se apaga. Vê-lo é suficiente para um redemoinho começar a se formar no meu peito. Podia reconhecer um tracinho do 'meu' Ravier naquelas mãos com as unhas bem cortadas, no corte de cabelo moderno, nos mesmos braços de antes, naqueles pés escondidos no tênis da moda, nos dedos entrecortados aos da namorada. Puxa, que inveja dela! E que sorte! Terá um cara sensível, carinhoso, simples e companheiro ao seu lado, se souber conservar. A mim sobram apenas as memórias de nosso tempo. Recortes alheios e silenciosos como o bilhetinho de natal que encontrei por acaso nos papéis antigos:

"Que Papai Noel lhe traga tudo de bom que você pediu e mais alguma coisa que você esqueceu. 
Feliz Natal". Ravier.

13 comentários:

  1. não entendi... pq vc é o responsável pelo fim da amizade? o q vc fez?

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    1. Comecei a desejar mais do que a amizade poderia me fornecer, e quando senti que não seria possível, comecei a deixá-lo de lado, a me distanciar. Fui egoísta e fiquei no egoismo.

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  2. na vida tem destas coisas mesmo ... agora é lutar para não incorrer no mesmo erro ...

    bjão

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  3. Minha mãe também é dessas. Sempre tentando me tirar de casa. Nunca conseguiu muito hahaha.

    Mas engraçado que nunca tive dessas. Sempre fui muito liberal com meus amigos, e pelos meus amigos de verdade, nunca subiu nenhum sentimento a mais. Nesse sentido até que sou bem controlado.

    Beijos doido.

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    1. Lobo, mas acho que essa foi a única vez. Embora não tenha muitos amigos de verdade, os que tenho, sei respeitar.

      Eu tava me descobrindo, gostava de estar com ele e sentia a necessidade de algo mais. Se fosse hoje, provavelmente não teria partido pra esse lado.

      Abraço!

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  4. Nossa! Que história bacana... sei lá, tão bom essas descobertas, né?! Dá uma sensação de vida!

    Tenho para mim que a amizade é um tipo de amor... eu já me vi em dúvida em relação a amigos que foram verdadeiros irmãos (que eu também não tive...)

    Algumas coisas não são para ser, mas nos servem para mostrar um caminho, apontar uma direção! Não fique ressentido pelo o que passou, não adianta ser vidente do passado, mas use a força dessa amizade para ir para frente, para buscar o novo e reviver a alegria daqueles tempos!

    Lindo texto!

    Abração!

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  5. Adorei seu texto e a sua história!
    Já me senti assim por muito menos do que uma amizade compartilhada como você teve com Ravier.
    Fará parte da sua história, sempre. Mas o sufoco e a angústia por não tê-lo, um dia passarão.

    P.S. Além da sinceridade, você escreve de um jeito muito gostoso!

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  6. Amigo...

    Final de ano é aquela coisa né...

    Olha, o que é correto a fazer a cada dia mais chego a conclusão que ninguém sabe. Agora uma das poucas certezas que eu tenho, é que o "incorreto" é desistir da gente, da caminhada.

    Não adianta, tudo está se movendo, nós mudamos a cada minuto, a cada experiência... então porque parar. Precisamos sim, de momentos nossos de reflexão, mas em algum momento teremos que caminhar novamente... e caminhar, caminhar... um dia, com sorte, chegamos lá.. E mesmo que venhamos a não chegar, teremos pelo menos a consciência tranquila de termos feito tudo o que podia (mas eu acho que a gente chega, afinal, no fim, tudo dá certo!)...

    Abração!

    Em tempo... vambora ver o mar?! Eu to indo! ;-)

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  7. Já vivi um amor por um amigo também... Mas fiquei na minha e mantive a amizade. Hoje nos distanciamos, mas por um acaso da vida mesmo...

    Abraços!!

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  8. Continuam as coincidencias: Minha dificuldade em me misturar com os outros garotos, minha mae desejando que eu fosse um pouco mais "arteiro" como meu irmao e a minha paixao pelos Cavaleiros do Zodiaco... (Alias, aquele foi o desenho que mais marcou a minha vida! Talvez fosse pela emocao e valores que eles trabalhavam em mim!)

    Agora uma coisa que voce nao deixou claro e se as pessoas notavam algo de diferente em seu comportamneto... Eu , por exemplo, sempre fui mega masculino e, apesar de tambem nutrir sentimentos pelos poucos amigos que tive, sempre me preocupei que eles nao fossem notados ao inves de deixar rolar...

    Seus posts sao simples e muito gostosos de se ler!

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  9. Jardineiro, eu creio que eu era normal, não tinha jeito afeminado, mas vai saber... Mesmo me achando másculo, sempre vinha alguém com um comentário, uma piada, talvez por eu ser muito tímido, não sei...
    Mas nunca transpareci nada pra Ravier. Até hj ele me tem como hétero.

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  10. Quanta profundidade e sentimento vc passa nos seus textos! Fiquei arrepiado ao terminar de ler D:
    Tive um melhor amigo que também não consegui administrar o que eu queria dele, ou meu ciúme, só que éramos mais velhos que vc. Nossa amizade durou dos 15 aos 20 anos. Conversávamos sobre tudo, fazíamos planos, saíamos, estudávamos juntos. Ele era praticamente uma extensão de mim, sinto muito a sua falta. Hoje nossas conversas se reduzem a papos furados e rápidos quando nos cruzamos pelo campus. Ele namora, parece feliz, e não sei se algum dia terei outra amizade que possa me completar e me dar tanto conforto quanto a que eu tinha com ele. Mas a vida segue =)
    Um abç

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  11. Não sei se o que aconteceu está escrito aqui e se chegarei nesse texto ainda hoje, mas que bonita a forma como tu te expressa. Parabéns!

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