Era natal, eu me divertia com meus primos e com os primos dos meus primos jogando baralho, tinha sido minha grande descoberta naquelas férias, e logo o meu vício. Começamos apostando dez centavos, depois vinte e cinco, cinquenta e um real. Ganhei algumas partidas, mas perdi muitas também. Era época de “Você Vai Ver” de Zezé Di Camargo & Luciano nas rádios, de “Alô” de Roberto Carlos e “Com Você” de Sandy e Junior. Era tudo que ouvíamos diariamente nas estações da cidade. Diferente dos anos anteriores, naquele ano não estávamos passando as festas de fim de ano na casa da minha avó com a família, mas na capital, na casa das irmãs da mulher do meu tio, que também estava lá, ou seja, a casa estava cheia.
Apesar de saber que teria muita criança na casa, minha mãe resolveu se precaver e convidou um amigo meu do interior para viajar conosco, assim se eu não me entrosasse com ninguém, teria Fred para me fazer companhia. Mas essa precaução acabou se revelando desnecessária, já que logo me vi na maior amizade com os meninos de lá. Brincávamos de ludo, damas, dominó, esconde-esconde, e claro, baralho, o carro-chefe das diversões. Vez por outra, me via mexendo na bolsa da minha mãe, à procura de novas moedinhas que garantissem minha participação no jogo.
Eram umas férias diferentes e muito divertidas. Acompanhadas de praia, caranguejo, passeios de trem e de barco, lojas de brinquedo e até de artesanato, onde adquiri um cigarrinho de madeira que guardo até hoje. Tudo ia muito bem até que uma simples brincadeira transformou tudo. Na televisão daqueles tempos, a sessão da tarde não era muito diferente, passava muito Ghost, A Lagoa Azul e As Tartarugas Ninjas, mas o grande destaque estava mesmo na Rede Manchete, com Os Cavaleiros dos Zodíaco. Era a novidade que chegava hipnotizando toda a garotada. Eu, particularmente, não havia me interessado ainda, e com isso, não perdia a chance de encher o ouvido dos meninos com minhas opiniões depreciativas.
Naquela noite, contudo, o conflito esquentou. Todos os meninos estavam vidrados diante da tevê assistindo os heróis japoneses, as meninas brincavam de jogo da memória na varanda e a calçada estava tomada pelos adultos. Eu queria alimentar meu vício do baralho, mas as meninas só iriam se todos participassem, e os meninos não abririam mão de mais um episódio da série. Eu estava sobrando. E assim fiquei transitando entre a sala e a varanda, tentando arrancar alguma diversão disso.
Quando estava na varanda, ficava enviando pistas erradas para as meninas perderem no jogo, o que as irritava. Quando chegava à sala, não parava um segundo de falar mal do desenho enquanto os meninos assistiam. Resumindo, virei o chato da noite. Sem aguentar mais, Fred lançou um desafio entre as minhas idas e vindas. Se eu voltasse de novo para a sala enquanto eles assistiam a série, eu era uma “mulherzinha”. Uma brincadeira boba, que eu mesmo já tinha feito com outros colegas. Poderia ter sido a “mulher do padre”. Que diferença faria? Eu não deixaria de ser homem por isso.
Com o desafio no ar, fui novamente ver o jogo das meninas. Mas depois de algum tempo, já as tinha enchido o suficiente, precisava perturbar os meninos agora. E assim, dei a volta pelos fundos, entrei no quarto, coloquei um boné e fui me chegando aos pouquinhos na sala, para que ninguém me percebesse. Bobagem! Em pouco tempo Fred tinha me visto e começava a me chamar de “mulherzinha”. Tudo bem, eu estava rendido. Não era um homem de palavra. Mas o pior estava por vir. Enquanto recebia o ataque verbal de Fred, minha mãe surgiu na sala. Paralisei ali mesmo. Conhecendo a tolerância dela para esse tipo de brincadeira, eu sabia que ela não deixaria aquilo passar.
Primeiro ela perguntou a Fred o que significava aquilo, e antes mesmo dele responder, já começou a acusá-lo, a lembrá-lo que ele estava ali porque ‘ela’ o tinha levado, que ele devia, no mínimo, respeito a mim. Fred ficou todo desconcertado. Eu me senti um réu no tribunal do júri, enquanto o advogado defendia meus crimes. Aquela cena me era extremamente humilhante. Minha mãe criando caso na frente de todos os meninos, por uma estúpida brincadeira de criança. Se não gostava, chamasse a atenção e pedisse para parar, sem fazer escândalo. Mas o clima estava instalado. Fui para o quarto chorar e minha mãe fechou o tempo. Pronto! Era o fim das férias animadas.
No fundo me sentia acabado pelo que acontecera. Não devia ter provocado os meninos. Não devia ter retornado à sala. Mais que isso! Eu devia ser mais macho como meus primos. Achava todos tão mais homem do que eu. Eu era um molenga. Se não o fosse, minha mãe não precisaria defender minha virilidade e eu não teria que passar por situações como aquela. Pobre Fred! Estava numa saia justa. A pessoa que havia pagado suas despesas e o mantinha ali tinha entrado em conflito com ele. Nem ir embora ele podia. Mas essa era exatamente a decisão de cabeça quente da minha mãe, voltar os três para casa no dia seguinte.
Enquanto desabafava com os adultos na calçada, a situação se agravou mais ainda, quando ela percebeu que as cunhadas do meu tio estavam do lado de Fred nessa confusão. E para completar, a mulher do meu tio saiu com essa:
- Quando a gente tem um filho com problema, não deve esconder.
Foi o que faltava para minha mãe a incluir na lista podre da família, e posteriormente cortar relações. Apesar de tudo, minha mãe acabou sendo convencida a ficar até o fim das férias. Pediu desculpas a Fred no dia seguinte, mas o clima tenso na casa permaneceu até o último dia. Foi a última vez que pisamos ali.
Como previsto, a família do meu tio foi literalmente banida do nosso convívio nos anos seguintes. Mas nada que o tempo não cicatrize, ou mude o eixo. Oito anos depois, meu tio e a mulher chegaram para passar o natal na casa da minha avó. Era tempo de refazer os laços, de esquecer antigas mágoas e celebrar a união. Minha mãe estava visivelmente exultante com a chegada deles. Fez questão de levá-los para rever a cidade, e não perdeu a chance de apresentar-lhes a minha namorada como um troféu. Afinal, o tempo mostrara que seu filho não tinha problema algum.